Ângela Zamberlan
Sadi Flôres Machado
RESUMO
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução n° 217A, da III Assembléia Geral das Nações Unidas de 10.12.1948 e assinada pelo Brasil na mesma data, assim como o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n° 226, de 12 de outubro de 1991, e promulgado pelo Decreto n° 592, de 6 de dezembro de 1992, assumem a postura expressa de combate ao racismo e a discriminação em todas as suas formas de expressão. Também o Supremo Tribunal Federal adotou, de forma majoritária, o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos tem status constitucional, cumprindo-lhe, portanto, quando da interpretação de questões envolvendo direitos humanos (RAMOS, 2013, p. 286)“zelar pelo cumprimento dos dispositivos constitucionais e expurgar as normas internas que conflitem com as normas internacionais de direitos humanos”.
A partir de tais premissas, buscar-se-á analisar, preliminarmente, a decisão proferida pelo STF que rejeitou a denúncia ofertada pela Procuradoria-Geral da República com base nos fatos apurados no Inquérito nº 3590/DF. A análise dar-se-á à luz dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, em especial a Declaração Universal Dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, cotejando-se, ainda, a referida decisão à posição anteriormente adotada pelo STF quando do julgamento do Habeas Corpus n° 82.424/RS, assim como a decisão adotada quando do julgamento do Mandado de Injunção n° 4.733/DF.
Em 08 de janeiro de 2013 o Ministério Público Federal, por seu Procurador-Geral ofereceu denúncia em face do deputado federal Marco Antonio Feliciano pela suposta prática de crime previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/1989, tendo em vista que no dia 30 de março de 2011 o denunciado publicou em conta pessoal junto à rede social Twitter manifestação de cunho eminentemente discriminatório em relação ao homossexuais a saber: “A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam ao ódio, ao crime, a (sic) rejeição”.
O denunciado quando da sua defesa trouxe à baila inúmeras teses, dentre as quais, a de atipicidade da conduta praticada ante a ausência de tipo incriminador quanto ao induzimento ou incitação à discriminação sexual, uma vez que o artigo 20 da Lei nº 7.716/1989 trata-se de tipo fechado apenas quanto a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. O Procurador-Geral da República, então, manifestou-se pelo recebimento da denúncia, citando inclusive o já decidido pelo STF quando do julgamento do Habeas Corpus 82.424/RS, quanto ao tema da discriminação e do racismo.
Entretanto, em sessão de julgamento realizada em 12 de agosto de 2014, a Primeira Turma do STF, composta pelos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Roberto Barroso, por unanimidade acompanhou o voto do relator Ministro Marco Aurélio de Mello rejeitando a denuncia por atipicidade, visto que o artigo 20 da Lei n° 7.716/89 não versa sobre discriminação ou preconceito em razão de opção sexual.
Ocorre que em 12 de setembro de 2002 Werner Becker e Rejane Becker impetraram Habeas Corpus em favor de Siegfried Ellwanger condenado, em instância superior, pela pratica de racismo, em virtude da edição e venda de livros que faziam apologias a idéias anti-semitas, sendo, portanto, condenado por anti-semitismo.
Buscavam os impetrantes ver afastada a imprescritibilidade do delito de racismo ao qual o paciente fora condenado sob a premissa de que, embora Siegfried Ellwanger tenha sido condenado pelo crime tipificado no artigo 20 da Lei n° 7.716/89, foi o mesmo condenado por discriminação contra judeus, os quais não seriam uma raça, razão pela qual defendiam que ao paciente não poderia ser imputada a imprescritibilidade do delito imposta pelo artigo 5° XLII da Constituição Federal.
Em 17 de setembro de 2003 em sessão de julgamento realizada pelo Pleno do STF, por maioria de votos, vencido o relator Ministro Moreira Alves e o Ministro Carlos Britto, o pedido de Habeas Corpus foi indeferido, momento em que o STF balizou o seu posicionamento quanto ao sentido e alcance da expressão racismo. Para tanto o STF adotou o entendimento de que a definição de raça nada mais é do que um processo de conteúdo meramente político, histórico e social, através dos quais se origina o racismo, surgindo daí a discriminação e o preconceito.
O Tribunal, então, entendeu que para a construção da definição jurídico-constitucional do termo “racismo” era necessário uma interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal em conjunto com os conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos e biológicos, visto que somente através da conjugação de todos estes fatores se alcançaria o real sentido e alcance da norma.
Em outras palavras: no precedente citado, entendeu o STF que, embora os judeus não sejam uma “raça”, ao longo da história sempre foram objeto de segregação e discriminação, razão pela qual a discriminação deliberada e dirigida contra os judeus configura ato ilícito da pratica de racismo, com todas as conseqüências daí advindas.
Já no julgamento do inquérito 3590, o STF rejeitou a denuncia pela pratica de delito de preconceito de raça e de cor adotando para tanto uma interpretação strictu sensu do artigo 20 da lei n° 7.716/89, o qual não define em seu tipo penal a prática de manifestação discriminatória em relação aos homossexuais.
Chama a atenção, ainda, o fato de que neste julgamento os ministros optaram por simplesmente ignorar todos os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, através dos quais o Brasil assumiu o compromisso de combate ao racismo e ao preconceito em todas as suas formas de manifestação, optando por um posicionamento balizado apenas nas normas de direito penal.
Mais, ao posicionar-se desta forma o STF foi de encontro a seu próprio entendimento quanto à interpretação do tipo penal do artigo 20 da Lei n° 7.716/1989. Isto porque quando do julgamento do Mandado de Injunção n° 4.733 impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Trânsgeneros- ABGLT em face do Congresso Nacional para, justamente, ver declarada a mora inconstitucional quanto à criminalização da homofobia, o STF em julgamento sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski não conheceu do Mandado de Injunção sob o fundamento de que “o disposto no art. 20 da Lei 7.716/1989 aplica-se a todo e qualquer tipo de discriminação ou preconceito, inclusive contra homossexuais”, de maneira que não haveria que se falar em mora inconstitucional.
Em sentido contrário, quando do julgamento do Habeas Corpus n° 82.424 o mesmo STF adotou entendimento de que a Constituição Federal, assim como as demais normas nacionais, devem ser interpretadas em total consonância com os tratados internacionais de direitos humanos, a fim de penalizar condutas discriminatórias, as quais são inconcebíveis, atentando contra o Estado democrático. O que se pode vislumbrar a exemplo do voto do ministro Mauricio Correa, o qual cita não só as normas de direito internacional ora apontadas, mas inúmeras outras ratificadas pelo Brasil.
É evidente que a população homossexual, assim como a população judaica, embora não “classificados enquanto raças” constituem grupos populacionais os quais são objeto de estigma e preconceito. Tanto isto é verdade em relação aos homossexuais que no início dos anos 80 quando houve o surgimento da Aids esta foi taxada como a Peste gay ou GRID – Gay-Related Immune Deficiency. Ainda segundo dados divulgados pela Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República de 2011 a 2012 houve um aumento de 46,6% no número de violações aos direitos humanos de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTs).
Assim, cumpriria ao STF, com base em todos os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, bem como através de uma interpretação sistêmica entre as normas internacionais e os direitos e garantias fundamentais incertos em nossa Lei Maior, em especial, o principio indisponível da dignidade da pessoa humana, acatar a denuncia do Ministério Público Federal nos autos do inquérito 3590.
Quanto à obrigação do STF em aplicar os tratados internacionais de direitos humanos tornando-os verdadeiros instrumentos de realização dos direitos e liberdades neles proclamados se manifestou o Ministro Celso de Mello quando do julgamento do Habeas Corpus n° 82.424:
Torna-se imperioso, pois, a partir da consciência universal que se forjou no espírito de todos em torno do valor essencial dos direitos fundamentais da pessoa humana, reagir contra essas situações de opressão, degradação, discriminação, exclusão e humilhação que provocam a injusta marginalização, dentre outros, de grupos étnicos, nacionais e confessionais.
Entretanto, não foi esta a postura adotada pela Corte quando do julgamento do inquérito n 3590. O agir da Corte Suprema mostrou um retrocesso de pensamento no que diz respeito aos direitos humanos.
Por fim, o argumento adotado no voto do relator do inquérito 3590 no sentido de que o artigo 5°, XXXIX da CF traz a garantia individual de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” não subsiste diante de um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito – a dignidade da pessoa humana. Posto que, em se tratando de choque entre uma garantia individual e um princípio fundamental, este se imporá.